Doutora Zeneida: as encantarias de uma pajé

Doutora Zeneida: as encantarias de uma pajé

Lembro bem, foi em 2007, em Soure, Marajó, perto da praia do Mata-Fome – um nome desse ninguém esquece. Com a pajé Zeneida e o karai guarani Wherá Tupã, atravessamos um manguezal, cujas raízes expostas vinham buscar oxigênio na superfície. Os dois deram uma aula de botânica no meio da mata. Cada planta foi nomeada, identificada, cheirada, acariciada, reverenciada, catalogada, classificada e enaltecida em suas propriedades medicinais e alimentícias. Era um momento mágico. A mata resplandecia. O designer Amaro Jr. que filmava tudo, enxugou lágrimas furtivas e falou:

– Se me perguntam o que eu estou filmando, respondo: “árvores”, porque não sei o nome delas. Mas os dois sábios não veem “árvores" genéricas, só plantinhas, que chamam pelo nome próprio na maior intimidade. Conhecem cada uma e elas demonstram conhecer os dois.

Foi esse tipo de saber que encantou o botânico Barbosa Rodrigues, quando organizou o Museu Botânico de Manaus no final do séc. XIX. Ele descobriu que os índios manejavam um sofisticado sistema de classificações no campo da botânica, com uma “nomenclatura clara, precisa e exata” que, para ele, “é tão rigorosa quanto o método científico de Lineu”.

O sono do quati

Esses saberes rejeitados pela academia entraram agora na Universidade Estadual do Pará (UEPA) pela porta da frente, levados pela pajé e educadora Zeneida Lima, que nesta terça (01) recebeu o título de “doutora honoris causa”. A cerimônia deixaria orgulhosos o Mestre Mundico, que a iniciou na pajelança, e seu bisavô Coemitanga, xamã da etnia Sacaca, conhecedor dos segredos da natureza humanizada.

A nova doutora, aos 87 anos, continua fazendo remédios extraídos da floresta, que para ela é uma “farmácia”. Faz isso desde os onze anos:

– “As receitas simplesmente me vinham à cabeça como hoje me vêm as músicas que componho e as poesias que escrevo” – diz ela no seu livro “O Mundo Místico dos Caruanas”, agora em edição ampliada com o título “Meus Caruanas”, no qual recupera narrativas místicas dos índios do Marajó e seus saberes sobre a medicina indígena. Autora de muitos livros, ela conviveu com etnógrafos reconhecidos como Pierre Verger, Roger Bastide e Nunes Pereira com quem trocou correspondência sobre os caruanas, “senhores das águas do nosso planeta”.

Mais de 120 músicas cantadas pela pajé foram gravadas por Egberto Gismonti. Uma delas, cuja letra em Nheengatu foi registrada pelo cônego Bernardino de Souza, em 1875, é uma canção de ninar, na qual as mães pedem emprestado o sono do quatipuru para fazerem dormir seus bebés.

Acontece que o cônego, sem educação musical, só registrou a letra. Numa oficina que ministrei, professores indígenas do Rio Negro disseram desconhecer a música. Ficaram de consultar as avós. Mandei a letra para a nossa pajé, que botou música nela.

Fronteiras do saber

Uma canção do ritual da pajelança foi cantada pela doutora Zeneida no XVI Seminário de Culturas e Memórias Amazônicas, organizado pela UEPA. Na mesa-redonda de abertura, nossa pajé foi homenageada por seus amigos: a cineasta Tizuka Yamasaki, a atriz Dira Paes, o músico Egberto Gismonti e este colunista que iniciou assim sua fala:

– Quem mais ganha com a concessão deste título de doutora não é aquela que acaba de recebê-lo, mas quem o concedeu: a UEPA, que traz para dentro da instituição o reino da encantaria com seus novos saberes e as diferentes formas de produzi-los.

Lembrei da conferência do ex-presidente do CNPq, Evando Mirra, intitulada “Ciência, amor, sabedoria”. Para ele, “a fronteira entre saberes é um espaço de troca e não uma barreira”. A Universidade pode nutrir ao mesmo tempo mais de um pensamento para transbordar os limites das disciplinas acadêmicas e acolher outros saberes, o que implica “um trabalho coletivo aberto para o novo e o diverso”.

Citei ainda o reitor da Universidade de Würzburg, na Alemanha, Theodor Berchem. na sua conferência de abertura do IX Congresso Internacional de Universidades, na Finlândia, em 1990:

– “A Universidade vive uma tensão permanente entre, de um lado, o compromisso com as culturas nas quais estão imersas – que são particulares e, de outro, com a ciência – que aspira a universalidade. Mas o conhecimento universal só pode ser construído se houver diálogo de saberes particulares”.

O voo do pássaro

Quem contribuiu também para a crítica ao modelo do conhecimento único foi Darci Ribeiro, que defendeu a universidade pluriepistêmica, capaz de incluir mestras e mestres dos povos tradicionais. Usou uma imagem potente no leito do hospital, horas antes de se despedir da vida, quando disse que havia sido um fazedor de universidades, o que não teria nenhum valor se não tivesse criado também o sambódromo:

– O pássaro da cultura tem duas asas. Uma é universidade, a cultura erudita. A outra, o sambódromo, o saber popular. Acontece que se faltar uma delas, o conhecimento não decola.
Nossas universidades costumam bater apenas uma asa. Com o título à doutora Zeneida, a UEPA bate as duas asas, no momento em que, lá na Feira Literária Internacional de Paraty (FLIP), o Tukano João Paulo Lima Barreto destacava na mesa “Plantas e Cura”:

– As plantas têm vida própria e nós precisamos entender isso para nos colocarmos como sujeito e não como objeto. Assim, tudo vira sujeito: o barulho da floresta, o balanço das folhas… Tudo isso é linguagem”.