A matemática do amor: Tuta e Regininha

A matemática do amor: Tuta e Regininha

O arraial de Aparecida realizado sempre no mês de setembro, em Manaus, era um lugar onde namoros às vezes começavam, às vezes terminavam. Naquele ano de 1969, jovens desfilam alegremente pra cima e pra baixo, paquerando, sem dar a mínima bola para a notícia que sacudia todo o país: o sequestro do embaixador americano no Brasil, Charles Elbrick. De repente, Tuta bate o olho num brotinho que não conhece. Seu coração faz tuc-tuc-tuc. Naquele momento, tem certeza absoluta: – “É ela”. Era ela, que passeava com a Raimunda Roroca, amiga dos dois. Ele, muito enxerido:

– Não vai nos apresentar?

Roroca, com aquele sotaque encantador do Pará:

– Reginin-nha, Tuta! Tuta, Reginin-nha!

Os dois jogam conversa fora. Tuta, pintoso, pergunta se ela gosta de dançar. Regininha, uma uva, confessa que adora músicas de Nelson Gonçalves. Combinam ir ao próximo baile na SAGA – Sociedade Atlética Guarda de Aparecida. Tuta se despede e vai direto ao “Serviço de Amplificação A Voz Quermesse de Aparecida”. Conta o dinheiro: NCr$ 1,00 (um cruzeiro novo). Dá para pagar um “telegrama no ar”. Minutos depois, Zeca Pinto anunciava no alto falante:

– Para você que está passeando neste arraial vestindo saia plissada azul e blusa branca de organdi de mangas arredondadas, alguém oferece a música “Êxtase”, de Nelson Gonçalves. Assinado: você já sabe quem é.

Abelha na flor

Enquanto toca a música, Tuta vai até a pracinha do Bingo, onde está Regininha. Ambos se entreolham e trocam piscadelas cúmplices e centelhas enamoradas no exato momento em que os últimos versos explodem no gogó do Nelson Gonçalves:

– E assim, como faz na flo-oor qualquer abelha / sugarei tua boca vermelha / num beijo espetacular.

O primeiro beijo que a abelha sorveu foi furtivo. Aconteceu no baile da SAGA. Teve de ser escondido, porque tinha uma pedra no meio do caminho: dona Maristela, mãe da Regininha. E que pedra! Ela não gostava de polinização e nem queria que aquela semente de amor brotasse, alegando duas razões: “Tuta tem um irmão comunista” e, além disso, “o tio dele, que era padre, deixou a batina e virou crente”. A Roroca orientou Regininha:

– Manin-nha, dizem que o papa abençoou o ex-padre. E essa história de irmão comunista, qualquer cristão que seja contra a injustiça social e a exploração é chamado de comunista. Os ricos usam a palavra “comunismo” para assustar e enganar os bobinhos e impedi-los de lutar contra os privilégios e a opressão. Não acredite no fantasma do comunismo.

O último adeus

Esses argumentos foram usados para convencer a futura sogra. Restava apenas a timidez de Regininha, mas Dile, irmã do Tuta, namoradeira que só, ajudou:

– Maninha, tu me ensina a fazer renda, que eu te ensino a namorar.

Regininha, além de mulher rendeira, era exímia artesã. Fazia, entre outras obras, arranjos de mesa muito requisitados. As lições de namoro deram certo. O casal de artistas, enfim, se matrimoniou em 1974. Ele imitou Nelson Gonçalves e cantou para ela os versos finais de “Êxtase”:

– Depois quero ouvir-te desvairada / dizer quase alucinada / nunca mais vou te deixar.

Os dois viveram grudados durante 47 anos. Eram professores e se apoiaram mutuamente. Regininha encantada com os quadros pintados por Tuta e ele com os arranjos artísticos dela. Tiveram um casal de filhos, duas netas, um neto e até uma bisneta.

A família deu o último adeus a Regininha, 71 anos, vítima de um enfarte. Foi sepultada no cemitério São João Batista, em Manaus, na quarta (29). O cortejo fúnebre percorreu ruas e vielas de Aparecida, sob aplausos dos moradores mobilizados pela Associação Comunitária do bairro. Diante da Escola Estadual Nossa Senhora Aparecida, crianças com balões brancos e cartazes homenagearam a passagem de sua ex-diretora.

Matemática amorosa

A dor da perda é tão universal que parece até que o escritor inglês Julian Barnes fez parte dessa história. Ele viveu a experiência traumática da morte de sua esposa. Mergulhou, então, numa imensurável solidão e só saiu do fundo do poço, quando escreveu o livro “Levels of Life”, publicado em português com o título “Altos voos e quedas livres”, no qual reflete sobre a solidão de um viúvo em luta com o mundo.

A narrativa de Barnes, que evoca o início do balonismo, se ancora em dois exemplos: o piloto Rozier e o copiloto d"Arlandes se juntam em 1783, em Paris. para fazer, com sucesso, o primeiro voo em um balão de ar quente; dois anos depois, o mesmo Rozier se junta com Romain, outro copiloto, para atravessar o Canal da Mancha. O balão pega fogo e os dois morrem.

– “Você junta duas pessoas que não se conheciam e às vezes o mundo se transforma, às vezes não. […] Juntas, elas são maiores do que seus dois “eus” individuais. Juntas, elas veem mais longe, e enxergam mais claramente”.
A psicanalista Maria Homem, que perdeu recentemente o homem amado, publicou no dia da morte de Regininha o artigo “A arte de juntar coisas” (Folha SP 26/09) no qual, ao comentar o livro de Barnes, avalia que essa é a essência do encontro: “O poder ser mais do que se seria estando só. Encontrar um outro que, não sei como, desperta o potencial que temos”.

Essa é a matemática amorosa, quando 1 + 1 não é 2, mas sempre cada 1 melhor. Foi assim que Tuta e Regininha transformaram, não digo o mundo, mas certamente o bairro e seu entorno. Agora, a coluna Taquiprati fica sem sua correspondente em Aparecida. Era ela, bem informada, que nos atualizava sobre as mudanças no bairro.