Denúncias sobem, mas seguro-desemprego a trabalhadores resgatados despenca

Denúncias sobem, mas seguro-desemprego a trabalhadores resgatados despenca

Além da diminuição inédita, o primeiro ano do presidente Jair Bolsonaro à frente do governo federal teve também a menor taxa de habilitação já registrada, de 68,9%. Essa taxa calcula quantos dos pedidos feitos foram aceitos. Antes de 2019, o número mais baixo registrado era de 90,9%, em 2012.

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O gráfico a seguir mostra quantos benefícios foram concedidos desde 2003 e a taxa de habilitação para cada ano. Os dados são do ministério da Economia.

A queda caiu apesar de o Ministério Público do Trabalho (MPT) ter recebido mais denúncias em 2019 do que em 2018. De acordo com balanço do órgão, foram 1,2 mil no ano passado, ante 1,1 mil em 2018. Essas denúncias levaram a 279 fiscalizações, que encontraram 1.056 pessoas em condições análogas à escravidão em 2019. Já em 2018 foram 249 fiscalizações, com 1.154 trabalhadores resgatados.

A procuradora do Trabalho Lys Sobral Cardoso aponta que o quadro de auditores do trabalho, vinculados ao Ministério da Economia, tem diminuído nos últimos anos, o que prejudica a atuação. “O grupo móvel já teve 10 equipes fixas, e hoje tem apenas 4. Teve uma redução de quase 50% no quadro, e isso afeta o combate ao trabalho escravo”, apontou.

Lys Sobral Cardoso é a titular da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conaete). De acordo com ela, mesmo com essa queda o trabalho continuou, inclusive durante a pandemia, com exceção dos meses de abril, maio e junho deste ano.

Questionado, o Ministério da Economia informou que “falar em "queda" pelo aspecto dos números absolutos de resgatados ou da taxa de habilitação não reflete o real cenário do combate ao trabalho escravo”.

“O exemplo disso é que em 2019 houve mais ações de fiscalização (279) do que 2018 (249), no entanto, foram encontrados menos trabalhadores por fiscalização”, acrescentou.

No último domingo (20/12), o país conheceu a história de Madalena Gordiano, de 46 anos, que viveu durante 38 anos em condição análoga à escravidão. Ela foi resgatada por auditores fiscais do trabalho e pela Polícia Federal em Patos de Minas (MG).

Madalena atuava como empregada doméstica na residência do professor universitário Dalton César Milagres Rigueira, que leciona no Centro Universitário de Patos de Minas (Unipam), mas foi afastado após a denúncia.

A mulher deixava bilhetes embaixo da porta pedindo dinheiro para comprar materiais de higiene pessoal, o que gerou a desconfiança de vizinhos e deu início às investigações. A história foi revelada pelo programa da TV Globo Fantástico.

Madalena

Madalena Gordiano, de 46 anos, viveu em condição análoga à escravidão durante 38 anos.Reprodução/ TV Globo

Madalena Fantástico

Ela trabalhava como empregada doméstica na casa do professor universitário Dalton César Milagres Rigueira, que lecionava no Centro Universitário de Patos de Minas (Unipam)Reprodução/Fantástico

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“Ela não tinha registro em carteira, um salário mínimo garantido, férias. Ela não tinha descanso semanal remunerado”, destacou o auditor fiscal Humberto Monteiro do MPT.

Além disso, as finanças de Madalena eram controladas pelo professor. “Ele me dava R$ 200, R$ 300”, conta.

Dificuldades nas fiscalizações

Apesar do aumento no número de denúncias e fiscalizações em 2019, há quem teve dificuldades para realizar o processo de resgate de pessoas em condições análogas à escravidão no ano passado. Ivanete da Silva Sousa mora em Açailândia, no Maranhão, e atua há 24 anos na organização sem fins lucrativos Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos (CDVDH).

A instituição faz denúncias, inserção e reinserção social de pessoas que trabalhavam em condições análogas à escravidão. Segundo Ivanete, o número de fiscalizações do Ministério Público do Trabalho na região tem diminuído desde 2018. Em 2019, a queda foi drástica, ela conta.

“No ano passado, nós fizemos 18 denúncias, mas apenas duas fiscalizações foram feitas. Nessas duas, as equipes não encontraram ninguém, porque já tinha passado um período de 6 meses desde a informação. Quando eles chegaram, os trabalhadores tinham ido embora do lugar”, afirma.

De acordo com a funcionária da ONG, as equipes do Ministério Público do Trabalho afirmam que não têm recursos para fazer as fiscalizações. “O resgate depende de uma equipe muito grande. Eles falam pra gente que foi cortado o orçamento”, explica.

Em 2020, devido à pandemia, nenhuma das três denúncias abertas pela ONG foi fiscalizada. “Eles dizem que a fiscalização só pode acontecer se tiver algum risco relacionado à pandemia, se tiver algum trabalhador doente, por exemplo”, conta Ivanete.

Ela ressalta a importância do resgate e do pagamento do seguro-desemprego aos trabalhadores, que saem em condições muito precárias dos locais de serviço clandestino. A maior parte das pessoas que a ONG atende vêm de fazendas e lavouras, mas também há casos de trabalhos na área de construção civil.

“É um trabalho muito degradante. As pessoas nessas condições não recebem o valor pelos dias trabalhados, não recebem ferramenta de trabalho. A alimentação é bem precária, às vezes não tem nada para comer e eles chegam a comer carne do mato. Os empregadores também dão muita bebia alcoólica para os funcionários, para eles não saberem a quantia que têm para receber”, explica.

Entre 1996 e 2016, o Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos realizou mais de 300 denúncias, que envolveram aproximadamente 3 mil pessoas e 50 fiscalizações.

Além disso, em 20 anos, a ONG ajudou a resgatar cerca de 500 pessoas que trabalhavam em condições precárias, em regiões como Açailândia, Pindaré-Mirim, Monção e Santa Luzia, no Maranhão, e em estados como Pará e Tocantins.

Resgate

O seguro-desemprego, que é direito de todo trabalhador resgatado e que foi concedido poucas vezes em 2019, foi essencial para a reinserção social de Gildásio Silva Meireles. Em 2017, com ajuda do Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos, ele conseguiu denunciar um fazendeiro que o mantinha em condições análogas à escravidão ao lado de outros trabalhadores.

Ele morava no interior do município de Monção, no Maranhão, quando recebeu a oferta de trabalho em uma fazenda da região. Chegando ao local, ele e os outros homens se depararam com uma situação extremamente precária. “Tivemos que comprar todos os nossos materiais de trabalho, que foram botas, camisas, calças, foices e material para amolar foice”, lembra.

“O local onde a gente se hospedou era uma casa velha, abandonada, cheia de ratos. A água que a gente bebia era de um córrego que trazia todas as fezes dos gados. Não tínhamos outra opção. Em relação a comida, era só o feijãozinho com arroz misturado. E o café da manhã era só café puro”, recorda Gildásio.

Além disso, ele e os outros trabalhadores não recebiam o salário pelos dias de serviço, e eram cobrados pelo fazendeiro, que alegava dívidas. “Eu imaginei: como a gente estava devendo se a gente estava trabalhando muito, forçado? Tinha pessoas que desmaiavam de fraqueza . Ele disse que a dívida era das foices, das camisas, dos materiais de trabalho”, conta.

Gildásio Silva Meireles foi resgatado em 2017, em Monção (MA)

Com ajuda de outros trabalhadores, ele conseguiu fugir da fazenda. Gildásio conheceu o CDVDH e, com auxílio da ONG, abriu denúncia no Ministério Público do Trabalho. Três meses depois, uma equipe de auditores foi até o local e resgatou os outros homens que estavam em condições análogas à escravidão.

Depois do resgate, ele conseguiu receber todas as parcelas do seguro-desemprego e agora aguarda o valor de uma ação por danos morais que abriu na Justiça. Além disso, Gildásio conseguiu entrar no mercado de trabalho. Atuou como garçom e, hoje, é taxista, além de participar ativamente do CDVDH como agente de cidadania.

“Esse trabalho no CDVDH foi muito gratificante pra mim. A ONG é uma mãe que leva esperança e sorriso de novo para as pessoas”, afirma.