"Nós mudamos a regra", diz Lula ao defender protagonismo de emergentes contra países ricos
Na cerimônia, que marcou a volta de Dilma à cena pública após um longo período de recolhimento, Lula exaltou o papel dos países emergentes na redefinição do tabuleiro do poder global, com redução das desigualdades, da fome e dos efeitos das mudanças climáticas, criticou frontalmente o Fundo Monetário Internacional (FMI) e, sem meias palavras, questionou o dólar como moeda dominante no comércio mundial.
Lula fez um discurso que soa como música aos ouvidos de sua anfitriã China, em franca campanha para se contrapor à hegemonia americana – a dita aproximação estratégica” do país asiático com o Brasil, a ser selada no encontro que o brasileiro terá nesta sexta-feira com o presidente Xi Jinping em Pequim, tem sido usada pelos chineses como parte desse plano (entenda aqui).
Ao defender que o banco dos Brics facilite o financiamento de projetos capazes de ajudar a melhorar a vida das pessoas nos países emergentes e em desenvolvimento, Lula pregou a libertação “das amarras e condições impostas pelas instituições tradicionais” que emprestam recursos e, segundo ele, depois se dão o direito de interferir na economia e nos governos desses países. Essas instituições, disse, “pretendem nos governar sem que tenham mandato para isso”.
“Como qualquer outro banco, quando (instituições como o FMI) emprestam para o terceiro mundo, as pessoas se sentem no direito de mandar, de administrar as contas do país, de visitar o país para ver os balanços do país, ou seja, era como se os países virassem reféns daquele que emprestou dinheiro. ( ) Vocês se lembram, os brasileiros, sobretudo, (de) quando todo ano descia um homem e uma mulher do FMI no aeroporto do Rio de Janeiro ou de Brasília para fiscalizar as contas do nosso país. Nós mudamos a regra”, afirmou.
Lula foi aplaudido em diversas oportunidades pela plateia de mais de 200 pessoas, incluindo representantes de outros países dos Brics, que o assistia. O vice-ministro da Relações Exteriores da China estava presente.
Além de exaltar a importância do Banco dos Brics como alternativa ao modelo de financiamento imposto pelos países ricos às nações mais pobres, Lula defendeu a reforma do FMI e do Banco Mundial e falou em usar “de maneira criativa” o próprio Brics e o G20 (grupo dos 20 países mais ricos do mundo, que o Brasil vai presidir em breve) para “reforçar os temas prioritários para o mundo em desenvolvimento na agenda internacional”.
“Não queremos ser melhores do que ninguém. Queremos as oportunidades para expandirmos nossas potencialidades e garantir aos nossos povos dignidade, cidadania e qualidade de vida”, afirmou o presidente.
Domínio do dólar em questão
Ao esticar o discurso lido (com a voz levemente mais rouca que o normal após alguns minutos) com um trecho na base do improviso, Lula voltou suas baterias contra o dólar, de novo entoando uma retórica bem alinhada aos anseios dos chineses, que trabalham para criar alternativas à moeda americana nas transações comerciais globais, enfraquecendo assim um dos pilares do poderio americano no mundo.
“Por que todos os países estão obrigados a fazer comércio lastreado no dólar? Por que não podemos fazer nosso comércio lastreado na nossa moeda? Quem é que decidiu que era o dólar a moeda depois que desapareceu o ouro como paridade. Por que não foi o yen, não foi o real, não foi o peso? Porque nossas moedas eram fracas, não têm valor em outros países, então se levou em conta a necessidade de que precisamos ter uma moeda que transforme os países”, disparou. “Acho que o século 21 pode mexer com a nossa cabeça, pode nos ajudar, quem sabe, a fazer as coisas de forma diferente”, emendou.
O assunto, por sinal, está na longa lista de temas sobre os quais o presidente brasileiro tratará com a cúpula do governo chinês. Nesta sexta, ele e Xi Jinping vão formalizar um acordo, já selado, que vai permitir que transações comerciais entre Brasil e China sejam feitas diretamente em real e yuan, sem passar pelo dólar, como funciona hoje. Também foi aberto com a China um canal que permitirá compensações internacionais de pagamentos diretamente na moeda chinesa. Trata-se de uma alternativa ao sistema Swift, controlado pelos americanos.
Ainda na toada da crítica ao sistema vigente no mundo hoje, Lula afirmou que é preciso repensar as práticas de um mundo “sem coração” ameaçado pela “ganância da minoria”.
“É intolerável que, num planeta que produz alimentos suficientes para suprir as necessidades de toda a humanidade, centenas de milhões de homens, mulheres e crianças não tenham o que comer. É inadmissível que a irresponsabilidade e a ganância de uma pequena minoria coloquem em risco a sobrevivência do planeta e de toda a humanidade”, declarou.
“Estamos sendo tratados como algoritmos e é preciso que o organismo reaja. A gente não pode ter uma sociedade sem coração, sem solidariedade, sem sentimento. Além da política, temos que cuidar da nossa alma, voltar a ser generosos, voltar a dizer bom dia, boa tarde, repartir o elevador. ( ) Precisamos derrotar o individualismo que está tomando conta da humanidade.”
Recomendações a Dilma
Lula desejou sucesso a Dilma no comando do Banco dos Brics e aproveitou para afagá-la nesta que é também uma tentativa de reabilitá-la na arena pública depois do impeachment e de um longo período de reclusão. Ele exaltou o fato de o cargo estar agora nas mãos de uma mulher e lembrou do passado de Dilma na militância contra a ditadura – “pertence a uma geração de jovens que nos anos 70 lutaram para colocar em prática o sonho de um mundo melhor e pagaram caro, muitos deles com a própria vida”.
O presidente orientou Dilma Rousseff a tornar o banco uma referência de sucesso para o desenvolvimento dos emergentes. “Sem pressa”, disse ele, “porque em economia não se poder ter pressa”.
Após a cerimônia, Lula participou de um almoço com Dilma, integrantes da comitiva e outros dirigentes do banco e partiu para uma visita à gigante de tecnologia chinesa Huawei, fabricante de equipamentos banidos em vários países do Ocidente. Autoridades americanas acusam a companhia de servir a interesses escusos do governo chinês, incluindo espionagem. A Huawei, evidentemente, nega.
Havia previsão de uma entrevista coletiva do presidente ao lado de Dilma nesta quinta, mas o compromisso foi cancelado. À saída da visita à Huawei, Lula escapoliu das perguntas dos repórteres. “Eu falei bastante hoje. Vocês têm notícia para a semana inteira”, disse. Sinal de que sabe exatamente o potencial de polêmica contido no discurso que fizera pouco antes.
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