O STF e o furto do vosso ventre

O STF e o furto do vosso ventre

Confesso publicamente: eu roubei. Reincidi inúmeras vezes. Não sei se o crime já prescreveu. Faz tanto tempo. Foi no final do último governo do Álvaro Maia. Tinha eu sete ou oito anos. Sabe aquela antiga feira de Manaus que começava na rua Ferreira Penna, na altura da Silva Ramos? Pois é, esse foi o local do delito. Hoje, autores de pequenos furtos são condenados à prisão por juízes de primeira instância, mas absolvidos, nem sempre, quando recorrem ao STF.

Ainda bem que na época não havia câmeras como agora no supermercado de Joinville (SC), que flagrou um casal com um pedaço de bacon e um pacote de macarrão. Os dois devolveram tudo, o roubo não foi consumado, mas pegaram quatro meses de prisão cada um, o que foi confirmado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Já no STF, onde transitaram na última década mais de 3.100 ações como essa, a ministra Carmen Lúcia invocou o “princípio da insignificância” do furto e anulou a pena, segundo o repórter Fábio Pescarini (FSP, 7/4).

Outro caso foi o do morador de rua de Ibaté (SP) condenado por furtar dois sacos de lixo reciclável, que ia vender pra comprar comida. A ação chegou até o STF e a mesma ministra o absolveu, invocando a “mínima ofensividade da conduta, a ausência de periculosidade, o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica”. Ainda bem que o caso não caiu nas mãos de Kássio Nunes Marques.

Nomeado por Bolsonaro, o ministro Nunes Marques odeia roubalheira de pequenos furtos, mas não assim os de “colarinho branco”, a quem dá outro tratamento: “rachadinhas”, assalto de pastores aos cofres do MEC e superfaturamento na compra de ônibus escolares ou de vacinas. Ele manteve a condenação de uma mulher presa em flagrante ao furtar em Boa Esperança (MG) 18 barras de chocolate e 89 caixinhas de chicletes avaliados em R$50, para a venda no sinal de trânsito. Tem algo de errado aí, não tem não?

Fruto do furto

A prisão de pobres e pretos, autores de pequenos furtos sem o uso da violência, quase sempre para comer, revela a natureza mesquinha do Poder Judiciário, que defende a propriedade privada, mesmo quando de valor insignificante. Pune para servir de exemplo. Criminaliza a pobreza “de uma pessoa em situação de desespero, que se vê obrigada a furtar”, segundo o presidente da Comissão da Advocacia Criminal da OAB-SP, Caio Favaretto. Felizmente não fui flagrado na minha ação delituosa.

Foi assim. A gente morava apertado num modesto barraco de zinco no Beco da Bosta, bairro de Aparecida. Éramos, na época, onze irmãs e irmãos, as duas últimas não haviam ainda nascido. Dormíamos em rede, parecia “motor de linha”, uma cruzando sobre a outra, os mijões nas redes de baixo, os outros nas de cima. De madrugada, ainda escuro, nossa mãe me despertou – eu sou o mais velho dos homens – para acompanhá-la à feira. No caminho, confessou que não tinha dinheiro para comprar o almoço:

– Meu filho, vai olhando pro chão que, às vezes, a gente encontra dinheiro que alguém perdeu. Reza – disse ela – lembrando uma vez que achei uma nota marronzinha de 20 cruzeiros, que tinha o retrato de um milico: ou Deodoro ou Floriano.

Percorremos, então, as barracas dos feirantes até o igarapé, carneirinho, carneirão, olhando pro chão, pro chão, pro chão. Nada. Bateu o desespero. Paramos na banca de peixe. Pequeno, eu não podia ser visto pelo peixeiro. Sem combinarmos nada, além da troca cúmplice de olhar, enquanto ela entretinha o vendedor, deslizei dois tucunarés para dentro da sacola. Eita caldeirada gostosa!

Repetimos outras vezes a operação, sem qualquer comentário da dona Elisa, que não falava sobre o ocorrido. Nem podia. Nas aulas de catecismo aos sábados, nos ensinava os Dez Mandamentos entregues por Deus a Moisés no Monte Sinai. Entre eles, o oitavo: Não roubar.

Crime deslembrado

Mais grave ainda do que um crime, era um pecado. Por isso, contei no confessionário ao padre, rezei o ato de contrição, pedi perdão a Deus, me “propondo firmemente nunca mais pecar”. Cumpri a penitência: alguns pai-nosso e ave-marias. Cada vez que reincidia, confessava outra vez. Não sei se estava mesmo arrependido.

O direito canônico é mais flexível do que o direito penal brasileiro, que é punitivista contra o pobre e condescendente com os ricos. Roubar um peixe prejudica apenas um indivíduo – o peixeiro, mas roubar a merenda escolar e o FNDE desgraça toda a sociedade. Tem gente que fica mais chocada com a não punição de pequenos furtos do que com a fila do osso e a fome.

Mais de cinquenta anos depois, trocava eu confidências com dona Elisa num parque onde brincava minha filha. Mencionei pela primeira vez o nosso segredo: a expropriação dos peixes. Ela não perdeu o rebolado nem a dignidade. Disse que de nada lembrava. Morreu negando.

A memória é mesmo traiçoeira. Eu me pergunto: será que o delito foi mesmo cometido? Aliás, o local do crime deslembrado nem existe mais, o igarapé foi aterrado: hoje é uma ladeira na rua. Nem sei se existiu mesmo essa feira no buraco da Ferreira Pena. Talvez a resposta esteja no relato dos evangelistas sobre o milagre da multiplicação de dois peixes para mais de 5 mil pessoas.

Espero que Nunes Marques, que é católico, ou seu colega André Mendonça, terrivelmente evangélico, não tentem punir este réu confesso de um crime ocorrido há 68 anos. Ou foi tudo apenas um sonho?