Carta ao gen. Braga Netto: o quartel sem partido

Carta ao gen. Braga Netto: o quartel sem partido

“Renunciar seria a solução”
(Waldick Soriano. A Carta. 1964)

Manaus, 3 de abril de 2022

Ilmo. sr. general de exército Walter Souza Braga Netto, ex-quase-futuro pré-candidato a vice-presidente da República

Brasília – DF

Selva, meu general! Selva!

Inspirado na música “A Carta” de Waldick Soriano, eu ia abrir esta missiva com a palavra “Saudações”. Decidi, porém, trocá-la pelo grito “Selva”, por estar mais de acordo com a defesa que V.S.ª faz do golpe militar de 1964 na nota lida nos quarteis nesse 1º de abril – o Dia da Mentira.
Então, “escrevo esta carta, não repare os senões, para dizer o que sinto” – como canta o saudoso Waldick. Com todo respeito, general, me diga, o senhor, que agora é um político fardado do PL (vixe, vixe, se gritar pega centrão…) não tem vergonha de tratar os quartéis e o povo brasileiro como uma cambada de débeis mentais?
É preciso muito cinismo, desfaçatez e certeza de impunidade dizer que a ditadura empresarial-militar foi “um marco histórico da política brasileira”, que nos deixou “um legado de paz, de liberdade e de democracia”, quando o Ministério Público Federal (MPF) já classificou a apologia da ditadura como “ato ilícito”, que demonstra “verdadeiro menoscaso” em relação à Constituição e ao estado democrático de direito e, por isso, pediu a retirada da nota do portal oficial do governo federal.

Abrilada de 64

Esta petição do MPF assinada pelo procurador Pablo Coutinho Barreto se refere à ditadura militar como “regime antidemocrático, violador de liberdades e contrário à dignidade humana, que vulnera, de forma drástica, os fundamentos da República Federativa do Brasil”.
Ele tem razão. É um deboche afirmar que a execrável “abrilada de 1964” fortaleceu a democracia, como é dito na nota, quando o golpe começou justamente rasgando a Constituição ao destituir um presidente eleito pelo voto popular, com o fechamento do Congresso Nacional, a intervenção no Supremo Tribunal Federa (STF) e, depois, a edição do AI-5.

General, trabalhei em vários jornais no Rio de Janeiro, entre eles o Correio da Manhã. Convivi com censores dentro da redação que vetavam a divulgação de notícias. Depois, já no exílio, fui correspondente em Paris do semanário Opinião, que era obrigado a colocar tarjas negras substituindo as matérias censuradas. Mas a censura não se limitou à mídia, como comentou o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso:

– Durante a ditadura – escreveu ele – todas as músicas, todos os filmes e todas as novelas tinham que ser previamente submetidos ao Departamento de Censura. As eleições canceladas, o Congresso fechado, parlamentares e professores cassados e estudantes proibidos de se organizarem, assim como muitos sindicalistas foram perseguidos e presos.

O documento do Pacto pela Democracia, formado por 80 entidades da sociedade civil, também condenou a celebração do regime autoritário imposto pelo golpe militar, que assassinou pelo menos 434 pessoas. Auditorias da Justiça Militar receberam 6.016 denúncias oficiais de torturas, mas outras fontes elevam para mais de 20 mil torturados por haverem cometido o crime de lutar contra a ditadura.

Coro de cigarras

Sua apologia do golpe militar, general, infectada de mentiras, humilha as Forças Armadas. O oficial do Exército na inatividade, Marcelo Pimentel, mestre em Ciências Militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, escreveu que “A ordem jurídica estabelecida pela Constituição Federal de 1988 define claramente o lugar social e institucional do militar e das Forças Armadas, onde devem atuar, funcional e politicamente, sempre de acordo com os princípios “organizacionais” da hierarquia e da disciplina”.

As Forças Armadas não podem tomar partido, “devem ser politicamente neutras, ideologicamente imparciais, apartidárias em sentido amplo, funcionalmente isentas, essencialmente profissionais e estritamente constitucionais” – pondera Marcelo Pimentel, que conclui:

– “Por tudo isso, é muito preocupante que, na segunda década do Século XXI, generais comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, em conjunto com o Ministro da Defesa, também general, publiquem “ordens do dia” versando sobre aqueles eventos – o Golpe e a Ditadura”.
General, “é simples assim, um manda e outro obedece”. O senhor está obedecendo ordens do Capetão, de quem quer ser vice, ambos claramente preparando um golpe militar.

Sei que estas linhas não chegarão a seu destino e que apenas quatro gatos pingados civis, seletos e fiéis, que tiverem saco ou útero, lerão até o fim. No entanto, escrevo assim mesmo, só para fazer coro com as cigarras que anunciam a chegada da primavera.

O livro “Luta, Substantivo Feminino” lançado em 2010 contém as histórias de 45 mulheres mortas ou desaparecidas e o testemunho de 27 que sobreviveram à tortura. Essas mulheres que hoje estão chegando aos seus 80 anos deram seus depoimentos.

– Elas precisam falar. Como cigarras, seus cantos, suas falas nos troncos das inúmeras árvores estão sendo ouvidas. Tempo chegará em que faremos um grande coro de todas as cigarras e incomodaremos aqueles que teimam em nos esquecer – comentou a pesquisadora Joana D"Arc Fernandes.

Cantemos com Waldick: “Renunciar seria a solução”. Abaixo a ditadura!

Amos. Atos, Obros

Taquiprati