O reverso da medalha: flores no velório dos índios

O reverso da medalha: flores no velório dos índios

“Não entendo quem escolhe o caminho do crime, quando há tantas maneiras legais de ser desonesto” (Alphonse Gabriel, precursor e inspirador do Centrão)

Seus avós italianos, que nasceram perto de Nápoles, atravessaram o Oceano Atlântico para viver nessas bandas de cá do continente. O pai – um honesto vendedor de verduras – jamais imaginaria que seu filho enriqueceria ilicitamente com recursos públicos de “rachadinhas” e que, para escapar à prisão, subornaria juízes, policiais e políticos. Ou que fingiria ser benfeitor dos pobres para limpar a imagem sebosa manchada por armas, crimes e associação com milícias. Nem que um dia seria esfaqueado em praça pública.

A facada não foi na barriga, mas na cara do gangster Alphonse Gabriel Capone, que ficou com três cicatrizes, daí o apelido de Al Scarface Capone. Ele enganou os trouxas distribuindo sopa gratuita a desempregados na Grande Depressão de 1929. Condenado a onze anos de prisão, não pelos homicídios que praticou, mas pela “rachadinha” – a “tax evasion” dos EUA, foi solto antes de cumprir a totalidade da pena, acometido por demência e pela sífilis que não tratou por ter medo de injeções.

Vários filmes registraram os assassinatos cometidos por Al Capone, um deles interpretado por Robert de Niro, o outro por Al Pacino. O mafioso, que matou pessoalmente seus desafetos ou mandou fuzilá-los, cometeu um crime ainda mais ultrajante: enviava coroas de flores aos velórios de suas vítimas “para debochar e rir da impunidade, mas também para suscitar dúvidas nos familiares sobre aquilo que toda a sociedade sabia: ele era o assassino, o mandante do crime” – segundo o escritor Eduardo Galeano.

Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real do Brasil será mera coincidência? A resposta está nas Medalhas do Mérito Indígena concedidas pelo ministro da Justiça Anderson Torres, na quarta-feira (16), a si mesmo, a seu chefe e a seus colegas.

Reverso da medalha

Os agraciados com a medalha foram Jair Bolsonaro (PL – vixe vixe) e mais nove ministros, três deles generais: Braga Netto, Luiz Eduardo Ramos e Augusto Heleno – aquele que “gritava pega Centrão”; o ex-oficial do Exército, Tarcísio de Freitas (Infraestrutura); o delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier (Funai); o coronel Aginaldo de Oliveira (Força Nacional) e o civil Marcelo Queiroga (Saúde), frustrado por não usar uniforme do quartel e que deve pespegar a medalha na camiseta militar camuflada que usa.

Segundo publicação no Diário Oficial, a medalha é um “reconhecimento pelos serviços relevantes em caráter altruísticos, relacionados com o bem-estar, a proteção e a defesa das comunidades indígenas”, o que é escárnio, deboche ou uma tentativa de colocar dúvidas naquilo que a parte sadia da sociedade brasileira já sabe, porque conhece a folha corrida de agressões aos direitos indígenas praticados por todos eles, em maior ou menor medida. As medalhas são as flores enviadas ao velório dos índios por seus algozes.

Com outras palavras, essa é a conclusão da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) que vai contestar na Justiça essa afronta de “um governo que tem sangue indígena nas mãos” e vai insistir em denunciar o presidente Bolsonaro ao Tribunal Penal Internacional de Haia por incentivar a invasão de terras indígenas pelo garimpo. Em plena pandemia da Covid-19, ele vetou a distribuição de água potável às aldeias e agora usou a guerra na Ucrânia para exigir celeridade na aprovação da mineração em terra indígena.

Agora, em seu governo, a política indigenista rasga a Constituição ao entregar a FUNAI ao agronegócio e ao lobby da grilagem, para que a cavalaria brasileira deixe de ser incompetente e faça o que fez a cavalaria americana, conforme discurso de Bolsonaro em 16 de abril de 1998 na Câmara dos Deputados.

Flores no velório

A cerimônia de entrega da Medalha ocorrida na sexta (18) no Palácio da Justiça não foi aberta à imprensa, nem constou na agenda oficial do presidente da República, mas sua foto exibindo um cocar colorido foi liberada pela Agência Brasil. Bolsonaro discursou confirmando a intenção criminosa:
– “Queremos que vocês façam em suas terras exatamente o que nós fazemos na nossa” – ele disse, sem mencionar o desmatamento da floresta, as queimadas, a morte dos rios. “O que sempre quisemos foi fazer com que vocês se sentissem exatamente como nós” – prosseguiu, sem especificar quem é o “nós” e sem citar o “sentimento” de homofobia, o racismo, o preconceito e a discriminação.

De fora da cerimônia de emedalhamento, ficaram o militar inativo da Marinha, Jussielson Silva, coordenador da FUNAI no Mato Grosso, o sargento da Polícia Militar Gerrard Souza e o ex-PM do Amazonas Enoque Souza, presos pelo que resta de republicano na Polícia Federal na Operação Res Capta deflagrada na quinta-feira (17), por estarem arrendando as terras indígenas a produtores rurais, o que é um crime. Mas bem que eles mereciam a ilustre companhia dos emedalhados.

A condecoração da Medalha do Mérito Indígena foi instituída para homenagear pessoas que se destacam pelos trabalhos em defesa dos direitos, das culturas, das línguas e das terras dos povos indígenas, como é o caso do sertanista Sydney Possuelo, 81 anos, que recebeu a honraria há 35 anos e que agora a devolveu por se recusar a compartilhá-la com aqueles que enviam flores para o velório dos índios.