Medo da guerra: de Ivan, o Terrível a Putin, o Horrível

Medo da guerra: de Ivan, o Terrível a Putin, o Horrível

Angustiada, uma ex-aluna telefona para me perguntar se a ameaça de Putin de usar armas nucleares era pra valer. “Será o fim do mundo” – ela geme. Abro o jogo: “Valéria, não entendo porra nenhuma de política internacional. Ninguém entende, é verdade, mas uns entendem menos que outros. É o meu caso”. Tento acalmá-la, lembrando Os Comungantes (1963), filme em preto e branco de Bergman, lançado durante a crise dos misseis russos em Cuba e dos testes nucleares da China.

O cenário é um vilarejo rural da Suécia com neve, árvores sem folhas e falta de luz solar, que justificam o título Luz de Inverno dado no seu relançamento. O pescador vivido por Max von Sidow entra em parafuso ao ler nos jornais que a China possui bomba atômica e pode usá-la a qualquer momento. Sua vida perde sentido. Desbussolado, melancólico, entra em profunda depressão. Emudece. Literalmente. Sua mulher o leva à igrejinha, onde o pastor, mergulhado numa crise de fé, não consegue fazê-lo falar.

Se a “guerra fria” adoecia as pessoas, imaginem a “guerra quente” da Ucrânia e seus desdobramentos. Por isso, hoje, muita gente vive situação similar à do pescador sueco. Afinal, quem tem pescoço francês, tem medo.

Tentando entender, passei a ler vorazmente tudo que caiu em minhas mãos proveniente de horizontes discrepantes. Nesta guerra de fake News, é difícil separar o joio do trigo. Ainda assim, seleciono textos. Para evitar apavorá-la, não envio à Valéria o artigo que psiquiatriza o comportamento de Putin, intoxicado pelo poder com a “síndrome de húbris”, nem o outro que cita o uso por ele de cortisona em doses elevadas, o que pode afetar sua estabilidade mental.

Um fato, porém, ninguém contesta: o exército russo invadiu a Ucrânia. Não foi a Ucrânia que invadiu a Rússia. No entanto, os que criticamos a matança em massa promovida pelos invasores, somos acusados de russofobia e de estarmos a favor dos Estados Unidos e da OTAN. Será?

Russofobia

Se houvesse um “emputecímetro” para medir o grau de desaprovação à OTAN e ao imperialismo americano, com certeza eu atingiria o grau máximo. Isso, no entanto, não me impede de manifestar o horror diante de tantas mortes causadas pelas tropas russas, denominadas equivocadamente por alguns saudosistas de “exército vermelho”, o que fez chacoalhar os ossos de Lenin e de Trotsky. Nas redes sociais, alguém tenta desqualificar minha postagem:

– Você não pode falar, porque se omitiu diante do massacre promovido pela Ucrânia em Donetsk.

Cara, eu já ouvia ouvido falar em Quixeramobim (CE) e Urucurituba (AM), mas nunca em Donbass e Lugansk. Aliás, aquele que me interpela, embora não o diga, também se omitiu. Por pura ignorância dele e minha e não por estarmos de acordo com qualquer tipo de crime bélico. Entendo a cobrança se for feita à hipocrisia dos EUA, que “condenam uma política externa praticada por eles mesmos com a Doutrina Monroe, usada para derrubar pelo menos uma dúzia de governos”, como denunciou o senador Bernie Sanders. Mas tentar calar dessa forma quem pensa diferente é desonestidade intelectual.

Afinal, “Quem provocou o conflito?” indaga Breno Altman na Folha de SP (01/03/2022). Foi “a Casa Branca, apoiada por vassalos europeus” que empurrou “Vladimir Putin ao caminho das armas, fechando as portas diplomáticas” – responde o mesmo jornalista, numa lógica similar àquela que culpabiliza a mulher de minissaia por haver provocado seu estuprador. Segundo Altman, a Casa Branca “provocou a guerra para justificar sanções econômicas draconianas que quebrem a Rússia e, de preferência, afetem as finanças de Pequim”. Francamente, isso é zombar da nossa inteligência. Especialistas não somos, mas idiotas também não.

Mir e Myr

As razões da invasão alegadas por Putin incluem motivações de ordem histórica, cultural, linguística e ideológica. Ele abriu seu discurso na TV destacando laços espirituais entre russos e ucranianos. A “Rússia de Kiev”, berço do povo conhecido como “rus”, falava uma só língua – o eslavo oriental – que com o domínio tártaro mongol no séc. XIII deu origem às línguas russa, ucraniana e biolorussa, tão diferentes como o português é do espanhol.

A reunificação começa com Ivan, o Terrível, que cria o Czarado em 1547. A Rússia começa a conquista do território da Ucrânia por etapas, que se prolongam pelos séculos 17 e 18. Durante os 370 anos do período czarista (1547-1917), a língua ucraniana foi perseguida e até proibida, mas ressurge com força no séc. XX. A palavra “paz”, se transliterada do alfabeto cirílico para o romano, é grafada “mir” em russo e “myr” em ucraniano. O curioso é que ela faz parte dos nomes dos dois presidentes: o do país invasor – Vladimir Putin e do país invadido Volodymyr Zelensky. Para Vladimir, a Ucrânia é uma invenção, não existe como pays.

Essas alegações deram origem à postagem de uma amiga que vive na Itália. Ela espera que Portugal não decida invadir o Brasil usando as mesmas justificativas: a língua de ambos os países é a portuguesa, historicamente os portugueses continuaram dirigindo o nosso país até 1889, mesmo depois da Independência com D. Pedro I e D. Pedro II, os nossos sobrenomes são portugueses e ainda por cima Portugal pode usar a justificativa do Kremlin de que a guerra da Ucrânia é para combater o nazismo, considerando que o Bozo, embora solidário ao Putin, é fascista.