Dona Elisa e o diálogo de surdos na Ucrânia

Dona Elisa e o diálogo de surdos na Ucrânia

O bombardeio promovido por Vladimir Putin deixou ilhados na Ucrânia alguns turistas brasileiros e cerca de 500 residentes, entre eles vários jogadores de futebol. Se o ataque russo acontecesse em julho de 1981, quem estaria em perigo? Quem? Quem? – Raimundinho Nonato – eu ia responder, mas a tragédia não se presta a brincadeiras. Uma das vítimas seria dona Elisa, turista amazonense, moradora do bairro de Aparecida, que em companhia deste seu filho, da nora e da neta saíram de Paris em excursão de duas semanas e meia por cidades da Rússia, Ucrânia e Polônia, num pacote turístico com 30 franceses.

O grupo viveu em Kiev experiência memorável. Lá, um milagre contribuiu para resolver problemas enfrentados pelos turistas, conforme registrado no “Diário de Viagens da Lizoca”, contendo impressões narradas oralmente por ela e datilografadas em 97 páginas por esse escriba. Quem pode se interessar na romaria de uma dona de casa de Manaus por igrejas ortodoxas, museus e hotéis? Só mesmo as nove filhas da autora. Por isso, o subtítulo “Meninas, eu vi”, consultados agora para abordar o tema.

Foi assim. O voo noturno de Leningrado que nos levaria a Kiev atrasou. Quando o avião da Aeroflot pousou no aeroporto internacional de Borispol, já era mais de meia-noite, fora do horário de trabalho da intérprete de francês que devia receber o grupo. Havia apenas um motorista de ônibus monolingue nos esperando com uma placa. Ele nos conduziu ao hotel Dnieper, um edifício novo no centro da cidade, cujo recepcionista só falava ucraniano e arranhava o russo mal e porcamente.

Diálogo milagroso

Acontece que ninguém do grupo entendia essas duas línguas eslavas. Tentamos inutilmente nos comunicar em francês, inglês, alemão, espanhol e português. Necas de pitibiribas. Nem a gesticulação, que a gente pensa ser universal, dava conta. E agora, José, como organizar na madrugada a distribuição dos quartos e especialmente o jantar? Estávamos mortos de fome.

Eis que de repente fomos salvos por um casal simpático de surdos-mudos, participantes da excursão, que se comunicava entre si através da Língua Francesa de Sinais (LFS) desconhecida por todos nós. Seus nomes não estão registrados no Diário. Do marido eu não lembro, mas ela se chamava Amélie ou Aurélie, algo assim. Contadores de piadas, ambos tinham conseguido se comunicar nos passeios pelas cidades russas até com a dona Elisa. Agora, na recepção do hotel em Kiev, assumiram a liderança, mediante desenhos e gesticulação adequada, auxiliados por uma linguista integrante da turma. Fizeram um mapa que serviu para a distribuição dos quartos.

E a janta? Aurélie ou Amélie foi até a cozinha, abriu panelas e geladeira e voltou de lá com um menu incluindo sobremesa. Tinha uma sopa de beterraba com folhas de repolho, que deu para o gasto. Parece que o funcionário da recepção transitava pela Língua de Sinas Ucraniana (USL), que pertence à mesma família da LFS e perdeu muitos usuários nos anos 1940-1950, porque durante a ocupação russa Stalin a baniu do sistema educativo, por ser “não uma linguagem, mas um substituto”. Em seu artigo Sobre o Marxismo na Linguística, Stalin chamou os surdos de “seres humanos anômalos”.

Desta forma, o casal de franceses que foi sempre discriminado e sofreu ao longo da vida com graves problemas de relação e contato com o outro, acabou resolvendo um problema coletivo de comunicação básica. Os demais, condicionados e presos a convenções estávamos impossibilitados de resolver. “Foi um milagre, igual o de Jesus quando fez ouvir os surdos e falar os mudos exclamando Éfata.– disse dona Elisa – citando o evangelista Marcos.

O crime, o criminoso

Milagre ou não, dona Elisa aproveitou no dia seguinte para rezar na Catedral de Santa Sofia na ida do grupo de turistas ao Museu de História e Arquitetura no centro de Kiev. Nas catacumbas do Monastério de Petcherskaia, percorremos quase meio quilômetro de labirintos a 15 metros debaixo da terra. Caixões, múmias, caveiras e ossos de monges se espalhavam por pequenos corredores. O marido de Amélie ou Aurélie começou a rir para uma caveira risonha e pegou o maior esporro da guia.

A excursão visitou ainda a cidade Tcherkassy às margens do rio Dnieper, com direito à visita a um kolkoze – uma cooperativa de camponeses, que nos receberam com uma enorme mesa de frutas: maçã, pera, chocolates, além de vinhos e cigarro. A neta da dona Elisa se divertiu na roda gigante do parque infantil do kolkoze.
É esse patrimônio que começou a ser destruído por bombas e pela invasão de mais de 100 mil soldados russos enviados pelo miliciano internacional Vladmir Putin, veterano espião da KGB – uma espécie de DOI-CODI soviética.

Dessa forma, a Rússia viola o território de uma nação soberana como já havia feito na Hungria, Tchecoslováquia, Afeganistão, Tchetchênia Geórgia e Síria. Putin é tão comunista quando seu aliado brasileiro Bolsonaro é democrata. O triste é que os EUA não têm moral para condenar violação de território, com o peso da guerra do Vietnã e a invasão do Iraque.

Putin devia chamar a Amélie ou Aurélie e o marido dela para estabelecerem com o outro lado um “diálogo – a invenção humana mais admirável de toda a história da humanidade”, segundo Jorge Luís Borges. O crime contra a população da Ucrânia com mortes de civis faz de Putin um criminoso. Lenin deve estar se mexendo na tumba.