Os Tupinólogos e a Semana de 22: Tupy or not Tupy?  

Os Tupinólogos e a Semana de 22: Tupy or not Tupy?  

Quem ouviu vozes indígenas no Theatro Municipal de São Paulo naquele fevereiro de 1922? Essa pergunta pode ser feita agora, cem anos depois da Semana de Arte Moderna, quando eclodem em todo o país eventos na mídia, centros culturais e universidades, para comemorar as projeções do movimento modernista na cultura brasileira. Um deles organizado pela PUC-SP discutiu, nessa sexta (18), “A presença indígena na arte brasileira” numa mesa com Daniel Munduruku, João Paulo Tukano e esse vosso escriba aqui.

Se tivesse de dar título à minha fala escolheria o que encabeça essa crônica. Tomo emprestado o Tupy or not Tupy, that is the question” do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade. Incorporo os tupinólogos – denominação usada para designar os intelectuais que coletaram narrativas indígenas em Nheengatu na segunda metade do sec. XIX. Na minha fala, resumi a trajetória de sete deles.

O mais apaixonado foi Couto de Magalhães (1837-1898), nascido na fazenda de seu avô, em Diamantina (MG), onde passou a infância. Formado em direito, procurou “as cores do país” não só em arquivos e bibliotecas, mas também em viagens por grotões do Brasil profundo, quando ouviu “lendas tupi” que transcreveu em – O Selvagem. Seu interesse cresceu, quando foi nomeado presidente da Província do Pará pelo Imperador Pedro II.

No navio que o conduziu a Belém, debruçado no convés viu lá embaixo um tripulante sem camisa e descalço, falando e gesticulando numa roda que o ouvia com atenção e de vez em quando explodia em gargalhadas. Intrigado, desceu para ouvi-lo, mas nada entendeu: a narrativa era em Nheengatu. Ficou deslumbrado com a tradução. Para conhecer essa literatura oral, decidiu aprender a Língua Geral e até escreveu uma gramática para ensiná-la.

Riquezas da Amazônia

O curioso é que processo similar ocorreu com outros tupinólogos. O geólogo canadense Charles Hartt (1840-1878) veio em missão científica inventariar as riquezas da Amazônia. Na parada do navio em Óbidos, à tardinha, viu uma velha senhora contando histórias em Nheengatu na calçada de sua casa, cercada por crianças e jovens. Quando traduziram as histórias, ficou fascinado, aprendeu a língua e coletou mitos amazônicos. Descobriu que essa era a riqueza mais importante da região.

Os dois não foram os únicos. Aconteceu também com o conde italiano Ermano Stradelli (1852-1926), nascido num castelo em Borgotaro. Sua intenção era visitar a Amazônia durante algumas semanas. De noite, numa maloca no Rio Negro, deitado em sua rede, ouviu os índios contarem histórias. Modificou seu plano e passou o resto da vida no Amazonas até sua morte em Manaus. Aprendeu a língua, fez um dicionário Nheengatu-Português e registrou as tradições, entre elas o mito do Jurupari.

Outro que não resistiu aos encantos das narrativas foi o botânico mineiro João Barbosa Rodrigues (1842-1909), filho de um comerciante português. Professor do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, mudou para Manaus em 1872, onde criou o Museu Botânico. Aprendeu o Nheeengatu e nessa língua coletou contos e cantigas. Quando perguntava o nome de uma planta por ele desconhecida, sempre respondiam contando uma história na qual a planta era descrita. Percebeu que em sociedades orais, essas histórias eram enciclopédias populares.

Temos ainda Brandão de Amorim (1865-1926) nascido em Manaus, filho de Alexandre Amorim, criador da companhia que fez a navegação direta de Liverpool a Manaus. Ele publicou 35 narrativas em edição bilíngue, sem mencionar que haviam sido recolhidas por Max José Roberto, um índio filho de mãe Tariana.

Literatura da floresta

Finalmente cabe citar Theodor Kock Grunberg (1872-1924), etnólogo alemão, que ouviu as narrativas dos índios de Roraima em suas viagens pelo norte do Brasil entre 1800 e 1913. Gravou num fonógrafo músicas e cantos, tirou fotografias, ouviu as histórias que os índios lhe contaram e registrou tudo no livro “De Roraima ao Orenoco”, publicado em cinco tomos na Alemanha em 1916-1917.

A pergunta que fiz na minha fala foi: por que as vozes indígenas gravadas pelos tupinólogos ficaram de fora da Semana de 22 e de seus desdobramentos, com raras exceções? Uma delas foi Raul Bopp, autor de Cobra Norato, que deslumbrado escreveu:

“Foi uma revelação. Eu não havia lido nada mais delicioso. Era um idioma novo. A linguagem tinha, às vezes, uma grandiosidade bíblica. No seu mundo, as árvores falavam. O sol andava de um lado para outro. Os filhos do trovão levavam, de vez em quando, o verão para o outro lado do rio”.

A outra exceção foi Mario de Andrade, não fosse ele leitor em língua alemã, nós não teríamos Macunaíma, porque até hoje, em 2022, não foram publicados em língua portuguesa, o que demonstra o desinteresse do Brasil. Em 2006, a UNESP editou o primeiro, tomo e parou por aí. É significativo que um escritor brasileiro, para tomar conhecimento de narrativas de povos indígenas no Brasil, tenha que recorrer ao alemão.

De qualquer forma, como sinaliza Lúcia Sá no seu livro “Literaturas da Floresta”, os textos ameríndios nunca foram analisados seriamente, considerados simples matéria-prima etnográfica, que só passam à categoria de arte quando trabalhadas por intelectuais não indígenas. Afinal, o que se ganha e o que se perde ignorando a vasta literatura registrada pelos tupinólogos? Tupy or not Tupy that is the question.