Taquiprati: As crianças Guarani-Kaiowá e as avós do Brasil

Taquiprati: As crianças Guarani-Kaiowá e as avós do Brasil

Oh! avós e mães deste Brasil varonil, suspeito que vós tereis interesse em conhecer a classificação que os Guarani Kaiowá fazem das crianças de suas aldeias. Tal suspeita surgiu quando, numa live com minhas irmãs, lhes falei dos tipos de criança descritos na dissertação de mestrado de Valentim Pires, defendida na segunda (31) na Universidade Federal de Grande Dourados (MS). Para checar o perfil de suas próprias netas e netos, minhas oito irmãs, todas elas avós, usaram a classificação guarani e descobriram, encantadas, seu caráter universal, que extrapola a aldeia e permite ver também os vários tipos de brasileirinhos.

Segundo Valentim, a cultura guarani observou o comportamento das crianças e categorizou-as poeticamente em quatro tipos: as sábias, as inocentes, as tristes e as observadoras.

Tipos de crianças

As primeiras – mitã tujakue´i ha guaiguikue´i – são sábias, possuem muito conhecimento e sabedoria, parecem até com o velhinho ou a velhinha que já morreram, são vistas como super inteligentes, surpreendem os pais e os parentes com sua criatividade, suas proezas e suas tiradas, com frases que assombram pela clareza e precisão. São iluminadas.

No segundo tipo – mitã tee´i – estão as crianças de comportamento inocente, dotadas de certa candura. É a primeira vez que vieram a este mundo e não sabem quase nada de como é a vivência aqui na Terra. Necessitam de acompanhamento do pai e da mãe no seu processo de desenvolvimento, que pode até retardar, mas isso não quer dizer que sejam bobas, sem criatividade. Elas também surpreendem, pois transcendem a maldade e a imperfeição humana, já que a referência mais presente é aquela que trazem dos patamares celestes, de onde estão vindo pela primeira vez.

A terceira categoria é a da criança mitã ñeroyrõkue´i, que ocorre pelas expectativas dos pais, que às vezes são contrariadas. Por exemplo, pai ou mãe esperam um menino, mas acaba vindo uma menina e a família não a recebe muito bem. Nessa situação, a filha carrega no sangue muita tristeza. Essa atitude de rejeição prejudica o amadurecimento da criança, que precisa de um tratamento medicinal específico, com banhos e massagens, para ela então carregar energia sadia no sangue.

Existe ainda um quarto tipo: as observadoras – ojapysaka. São aquelas crianças enviadas por Ñanderu – o criador de todas as coisas – com a missão de escutar o mundo e de testemunhar as formas de convivência que estão florescendo na Terra, para retornar de onde vieram com a mensagem. Neste caso, estas crianças mensageiras não conseguem viver por muito tempo e podem chegar a falecer com pouca idade. São chamadas de angelito na aldeia Pirajuy, por influência da língua espanhola.

O som da flecha

Para desvelar o mundo da infância guarani-kaiowá, Valentim, batizado com o nome de Hu´y Ryapu (o som da flecha na língua materna), usou vários procedimentos: observou o comportamento das crianças na aldeia Pirajuy, município de Paranhos (MS), fronteira com o Paraguai, com anotações em seu caderno de campo; conversou e entrevistou avós, parteiras, rezadores; leu teses de pesquisadores guarani e de antropólogos não-indígenas. Enfim, trabalhou com duas mestrias, uma não acadêmica e a outra que entrou na academia.

Na dissertação, Valentim recorre ao recurso da autobiografia e relata a sua própria infância, desde a gravidez de sua mãe, o nascimento, o parto, o saber da parteira e discute como a trajetória de formação da pessoa do pesquisador se liga com o modo de ser guarani, em especial o praticado pela parentela à qual pertence. Trata com distanciamento crítico a Missão Evangélica Unida, em cuja farmácia a enfermeira alemã se recusou a vaciná-lo com seu nome guarani, registrando-o oficialmente de forma autoritária como Valentim para horror de sua mãe.

Dedica uma reflexão sobre a escola colonizadora que se opõe à pedagogia guarani. Conta como uma missionária alemã chamada Fridigat tapou com esparadrapo a boca do seu primo Adriano por ter ele falado na sua língua materna. Relata sua passagem aos 13 anos pela Missão Evangélica Caiuá em Dourados, as humilhações da professora no internato – “Aqui na sala de aula não é aldeia para conversar em Guarani. Se quiser continuar volte logo para a aldeia”. A relação com os colegas: “Na sala onde eu estudava ninguém queria falar comigo, porque eu não sabia falar direito a língua portuguesa”,

A resistência

A classificação das crianças que tanto encantou minhas irmãs estaria perdida para sempre se a Missão Alemã tivesse sido vitoriosa. Lá, os Guarani eram ensinados a abandonar suas crenças e os saberes tradicionais e a negar seu jeito próprio de ser e sua identidade, sendo batizados na igreja com nomes bíblicos.

– Os mais velhos percebiam que a escola feita pelo missionário e pelo chefe de posto estava a serviço da dominação para acabar com a língua e as crenças indígenas – escreve Valentim e ao ler isso ouvimos o som da flecha disparada.
Considerando que a vida na reserva indígena era dominada e controlada pelo branco, inicialmente só restava aos Guarani “a resistência silenciosa no procedimento denominado de oñombotavy – fazer-se de bobo, para que os missionários e o chefe acreditassem que os Guarani estavam "virando" brancos. Mas nunca acabavam de "virar", e até hoje é assim.