No Museu da Covid, há muitas gotas de sangue

No Museu da Covid, há muitas gotas de sangue

“Há uma gota de sangue em cada museu”
(Mário Chagas, 1997)

A figura patética do general Pazzuelo, ex-ministro da Saúde, flagrado quando desfilava de bermuda e sem máscara num shopping de Manaus, exibindo seu peito de pombo estufado e sua pança proeminente, poderá ser imortalizada no Museu da Covid, caso o Brasil siga o exemplo dos Estados Unidos. Lá o Instituto Smithsonian, responsável pela administração de 19 museus, acaba de criar mais um: o Museu da Pandemia, que pediu doação de objetos e fotos capazes de revelar para a posteridade o que aconteceu em um dos períodos mais críticos da história da humanidade.

Os americanos evitam assim o descaso sucedido durante a gripe espanhola de 1918, quando foram descartados muitos registros capazes de explicar as mudanças no cotidiano das pessoas. É que até então, o museu era visto pelo senso comum como um “mausoléu”, um “túmulo” ou no melhor dos casos, um “gabinete de curiosidades antigas”, expresso na marchinha de carnaval cantada por Linda Batista “Quem gosta de passado é museu” e no dito popular “Quem gosta de velho é museu”.

Mas de lá para cá muita coisa mudou após a criação do Conselho Internacional dos Museus (ICOM), em 1946. O museu foi redefinido como uma instituição aberta ao público, útil porque coleciona, conserva, estuda e expõe o patrimônio material e imaterial da humanidade. Ele é um ambiente que dinamiza a memória viva e contribui para o conhecimento, a aprendizagem e o deleite da sociedade.

Em um dos poemas do “Museu de Tudo”, João Cabral poetiza que o museu “é mais do que um museu de tudo: é um circo-feira, é um teatro, onde o tudo está vivo e em uso”. O tikuna Liverino Otávio vai mais longe ainda ao apresentar definição poética a partir Museu Maguta, no Alto Solimões:
– “Museu é um lugar que serve para guardar o nosso futuro”.

Museu em carne viva
Qual o nosso futuro como nação se não entendermos como foi possível esta tragédia e quem são os responsáveis por ela? O médico e deputado Osmar Terra Plana (MDB vixe vixe), ex-ministro do governo Bolsonaro, avalizou a política genocida de seu chefe e anunciou, em março de 2020, que o coronavirus provocaria “menos mortes em todo o país do que os óbitos causados pela gripe no Rio Grande do Sul durante o inverno”. Ele devia ser ouvido pela CPI da Pandemia. Sugiro que o Senado proponha a criação do Museu da Covid, cujo acervo será composto por farto material coletado com o depoimento das testemunhas.

Durante mais de um ano, 11 ofertas para compra de vacinas foram rejeitadas pelo governo Bolsonaro, que longe de orientar a população sobre o uso da máscara e o distanciamento social, promoveu aglomerações. Negou a ciência. Levantou suspeita sobre a eficácia da vacina, quem a tomasse podia virar jacaré. Investiu pesado na fabricação de cloroquina, preconizada por ele e seu ministro-general como tratamento preventivo. Em vez de vacinas, decretos sobre compra de armas, redução de rastreamento de munições e impostos sobre livros. O Museu da Covid trataria de tudo isso.

“Há uma gota de sangue em cada museu” escreve Mário Chagas, entendendo por tal a gota de humanidade e de historicidade presente na instituição. A imagem parafraseada do poema de Mário de Andrade “há uma gota de sangue em cada poema” pode também ser reinterpretada e nos fazer perguntar quanto sangue escoará em um museu que pretende focar a morte de mais de 400.000 mil brasileiros, caminhando rapidamente em direção a meio milhão de óbitos? Este “museu em carne viva” pode fazer uma radiografia da sociedade brasileira, ao registrar tristeza, dor e orfandade semeadas por uma política genocida.

O acervo
Quais objetos, peças e artefatos poderiam ser colecionados no Brasil pelo Museu da Covid, além da mencionada foto feita por Jaqueline Bastos do desmascarado ministro Pazzuelo lançado por Bolsonaro como candidato a governador do Amazonas? A coleção do Instituto Smithsonian, que já possui mais de 500 peças, pode nos sugerir algumas pistas.

Ampolas das primeiras vacinas usadas contra a Covid-19 permitem explicar o trabalho dos cientistas do Butantan e da FioCruz na luta contra o vírus. Materiais de proteção usados por médicos, enfermeiros, funcionários de hospitais, motoristas de ambulâncias esclarecem as difíceis e arriscadas condições de trabalho, muitas vezes sem o equipamento necessário. Diferentes tipos de máscaras fabricadas artesanalmente “dão conta da criatividade das pessoas” que fabricaram sua própria proteção, como registra Diogo Bercito na Folha de SP.

Coleções de garrafas de álcool em gel produzidas por fabricantes de bebidas, ventiladores, kits de intubação, cilindros de oxigênio hospitalar que podem historiar toda a luta de médicos e enfermeiros em Manaus e outras cidades, aplaudidos por moradores que com as luzes piscando nos prédios.

Fotografias das cidades desertas, mas também das festas clandestinas. Filas para tomar vacina. Escolas esvaziadas. Crianças com aulas à distância. Proliferação de lives. O léxico novo criado em português para dar conta da situação, entre eles, o “covidiota”.
Não foi publicada qualquer foto, mas existe o áudio vazado do general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Casa Civil, confessando haver tomado a vacina, escondido porque o capitão manda e o general obedece. Quantas histórias esse museu ensanguentado pode contar?