Faz escuro, mas eu canto, mesmo desafinado

Faz escuro, mas eu canto, mesmo desafinado

– Não podemos ir juntos – disse Thiago de Mello: – Vou na frente, você fica aqui, espera um pouco e depois me segue e quando chegar lá, fingimos que não nos conhecemos.

Ele foi, eu fiquei.

Estávamos os dois num bar em Jaguarão, fronteira com o Uruguai. Era uma tardinha de outubro de 1969. Perseguidos pela polícia, fugíamos para o exílio, sem passaporte. Para entrar lá e no Chile, bastava a carteira de identidade. Ali, no hotel, não podíamos ser vistos juntos. Separados, se um fosse preso, o outro podia se escafeder.

O poeta saiu, eu fiquei no bar fazendo hora. Dei um tempo. Depois, procurei o hotel na rua das Portas. Lá, me pediram os documentos. Naquela época, a carteira de identidade não era unificada nacionalmente. Cada estado tinha a sua, a do Amazonas chamava a atenção por sua singularidade. Era um “livro”. Parecia a atual carteira de trabalho, só que com capa amarela. Tratava-se, na verdade, de um documento de identidade tribal. Trazia nomes de pai, mãe, avós e, se duvidar, de minhas nove irmãs, irmãos, sobrinhos, tios e até vizinhos do Beco da Bosta, mencionando o meu bairro de nascimento – Aparecida – o que efetivamente é fundamental pra minha identidade. Evidentemente que exagero.

– Não a-cre-di-to!”!!! O recepcionista, separando as sílabas, mostrava aos hóspedes o meu documento.

– “Durante 25 anos nesse hotel, nunca vi um amazonense. Agora, vejo dois de uma vez só, com seus livros de identidade”.

O gaúcho achava que era mesmo uma coincidência ex-tra-or-di-ná-ria.

A Tetê

É. Deu azar. O hotel inteiro – o único de Jaguarão – parou pra nos ver. Foi um escândalo. No meio da confusão, caminhando pelo corredor, surgiu o poeta, vestido como sempre de branco. O recepcionista, consultando sua ficha, me perguntou:

– “Você conhece Amadeu Thiago de Mello?”

Neguei. Lá fora, um galo cantou três vezes. O gaúcho disse, então, que fazia questão de fazer as apresentações.

Ficamos os dois, ali, diante de hóspedes atônitos, apertando a mão um do outro, com cara de égua, de devoto de Santa Etelvina, de clandestinos amadores, unidos por uma mesma identidade amazônica. O poeta deu a volta por cima, disse que era um prazer conhecer alguém de sua terra e me convidou para jantar com ele no restaurante do hotel. Ninguém é amazonense impunemente.

Dessa forma, pelo menos tínhamos um álibi para planejar o que faríamos. No dia seguinte, cruzamos a ponte sobre o rio Jaguarão, andando. Passei primeiro. O poeta, logo depois. Sua mulher, Lurdinha, grávida de Isabela, já nos esperava em Montevidéu, de onde continuamos a viagem para o Chile.

Já contei essa história, recupero-a agora quando o poeta nos diz adeus. É que estou omicronzado ou influenzado, sem vontade de cantar diante da morte do amigo querido. Cantamos juntos, sempre a mesma canção, para celebrar aniversários do poeta, o primeiro em 1968, numa semiclandestinidade no Rio, A outra vez no exílio em Santiago de Chile, em 1970. Foi um cumpleaños supimpa, quando sua filha Isabella, minha afilhada, com dois meses de vida, foi apresentada aos amigos chilenos. Cantamos então a canção de autor anônimo, que lhe foi ensinada pelo poeta Manuel Bandeira. Ela faz parte da tradição oral e, que eu saiba, nunca foi gravada.

Nem o Google, metido a sabichão, registra a sua existência. A letra é simples:

– Passa pra cá Tetê, vamos acabar de amor. Eu não te dou meu coração, porque é preciso arrancar, e eu arrancando Tetê, eu sei que vou morrer. E eu morrendo já não posso mais te amar.

A Alzira

Nós voltamos a cantá-la com outras músicas no aniversário de 80 anos, em um restaurante de Brasília, num coro com sua irmã Cecéu e sua filha Isabella, depois do jantar do qual participaram umas trinta pessoas. Foi após a homenagem da Câmara de Deputados a Thiago – iniciativa da parlamentar Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM) – com exposição dentro do Congresso Nacional de um painel gigantesco contendo na íntegra o poema “Os Estatutos do Homem”, escrito em 1964, mas que logo ganharia o mundo, traduzido em dezenas de línguas.

Tetê recebeu nova cantada em Porto Velho (RO), em 2009, documentada pelo jornalista Altino Machado, no Festival de Cinema Ambiental da Amazônia (Fest Cineamazônia). a. Thiago e eu havíamos participado de uma mesa redonda de Solidariedade entre os Povos da América, contando histórias do exílio. Ali, na “hora do recreio”, apareceu toda faceira a danada da Tetê que nunca nos abandonou, nem mesmo depois da chegada da ciumenta Alzira.

Faz poucos anos que a deslembrada Alzira entrou na vida de Thiago. Fui logo informado por ele, que me telefonou bem cedinho, falando em linguagem cifrada:
– O Japonês descobriu que a Alzira me pegou.

A voz embargada sugeria que a coisa era séria. Quando pedi detalhes, Thiago esclareceu as identidades daqueles dois personagens. Alzira era como ele chamava na intimidade a doença de Alzheimer que começava a dar os primeiros sinais. E Japonês era o neurologista Massanobu Takatani, seu médico, que a diagnosticou.

Minha reação foi uma sonora gargalhada para esconder a tensão provocada pela notícia. Disse-lhe que não me importava de pegar a Alzira, se pudesse chegar aos 90 anos.

– Te telefonei só para ouvir essa risada – falou o poeta, aliviado.

Agora, este meu canto desafinado celebra Thiago, velado no Palácio Rio Negro. Como no poema de César Vallejo, “su cadáver estaba lleno de mundo”.