A CPI da Poesia: os poetas mortos

A CPI da Poesia: os poetas mortos

“Só a poesia possui as coisas vivas. O resto é necropsia”
(Mário Quintana)

Quem está tentando matar a poesia no Brasil? Para identificar os autores de tais ações foi criada na Câmara de Deputados a CPI da Poesia, que tem o poder de convocar até os mortos. No entanto, como seu foco abrange narrativas literárias e outras formas de expressão artística, indo além do ato poético em si, talvez devesse se chamar a CPI da Poética. De qualquer forma, sua presidente, a deputada federal Joênia Wapixana (Rede/RR), intimou várias testemunhas, advertindo que os mentirosos podiam sair dali presos.

O primeiro depoente vivo foi o cartunista e poeta Ziraldo, 88 anos, que fez um histórico da quadrilha poeticida, cujo comandante nasceu em meados dos anos 1950 em Glicério (SP) e foi apelidado de Grrrr-au-au, porque odiava versos, uivava e latia cada vez que via um poeta vivo. O seu lema era “Ódio a Ode”. Perseguiu ferozmente Flicts – uma cor que, surgida na ditadura militar, servia de vacina contra a tristeza e a depressão.

Convocado do céu, onde reside há quase dois anos, o cantor João Gilberto, inventor da bossa nova e celebrado no mundo inteiro, confirmou à CPI que Grrrr-au-au odiava aquilo que ignorava. O comandante da quadrilha nunca havia ouvido uma música sua, não decretou luto oficial por sua morte, limitando-se a comentar: “Parece que era uma pessoa conhecida”. O depoente citou Caetano Veloso que na ocasião se manifestou chocado com o tom de desprezoBessaJosé R. Bessa Freire e a ignorância de Grrrr-au-au. Indagou à presidente se podia cantar “Chega de Saudade”.

– Não. Quem tem que cantar aqui é o MC Reaça – interrompeu aos berros o Pit Bull Rachadinha, que nem era membro da CPI, mas sugeriu que fosse convocado do inferno, onde reside, o autor do Proibidão do Grrrr-au-au para quem “as feministas merecem ração na tigela e minas de esquerda tem mais pelo que cadela”. Instaurou-se uma balbúrdia e a sessão foi suspensa.

O idiota e os bocós

Os trabalhos foram retomados com o depoimento de um vizinho de João Gilberto no céu. Era o poeta e cronista Aldir Blanc, vascaíno doente, coautor de A Cruz do Bacalhau, morto em decorrência do Covid-19, sem que houvesse qualquer manifestação da secretária de cultura Regina Duarte, emudecida também diante das mortes do escritor Rubem Fonseca, do cantor Moraes Moreira, do ator Flavio Migliaccio e do teatrólogo Jesus Chediak. Autor de Mestre Sala dos Mares e O Bêbado e o Equilibrista, Aldir chutou o pau-da-barraca ao traçar o perfil do chefe da quadrilha com aquele estilo que desenvolveu em sua coluna nos semanários O Paquim e Bundas:

– O Grrrr-au-au nunca leu um único soneto em sua vida publicado em livros “que tem muitas palavras”. Isentou de impostos a compra de armas e taxou os livros. Ele diz que sua cor é verde-amarela para enganar os trouxas e, dessa forma, esconder sua baba gosmenta e seu olhar alucinado de cachorro doido, como no poema de Zeca Baleiro. Declarou guerra à literatura, alegando que o Brasil tem que deixar de ser um país de maricas. Destilou preconceitos homofóbicos ao declarar que quem gosta de poesia é gayzinho. Chamou de idiotas as pessoas que em razão da pandemia até hoje ficam em casa escutando música e lendo poemas.

Em seguida, a CPI quis ouvir o depoimento do poeta Manoel de Barros, vindo do Olimpo, a toca de Zeus. O relator Mário Juruna indagou se poesia era mesmo diversão de “idiotas” e por isso merecia ser exterminada.

– Bocó é um que gosta de conversar bobagens profundas com as águas. Bocó é aquele homem que fala com as árvores e com as águas como se namorasse com elas – respondeu o poeta.
– Mas afinal, o que é poesia? – perguntou o relator.
– Todas as coisas cujos valores podem ser disputados no cuspe à distância servem para poesia. Quando as aves falam com as pedras e as rãs com as águas, é de poesia que estão falando. Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira. A linguagem da poesia força a realidade a se manifestar, escava suas profundeza e traz à tona as situações fundamentais da condição humana, como queria Alfred Doblin. Por isso ela é odiada pelo Grrrr-au-au.

O outro capitão

O último a depor na primeira etapa da CPI foi o ator Robin Williams, que reside no andar de cima, mas viveu na tela o papel do professor de literatura no filme “Sociedade dos Poetas Mortos”. Ele declarou que rompeu com o autoritarismo do colégio tradicional, uma espécie de “escola sem partido”, para combater seu caráter castrador e repressivo. Seu depoimento forneceu elementos para a CPI dimensionar a poesia:

– Nós não lemos e escrevemos poesia porque é algo bonitinho, mas porque somos membros da raça humana – disse ele, que orientou seus alunos a escreverem poemas a partir de suas próprias vidas. Eles criaram então um clube secreto para recitar poesia, escondidos numa caverna perto da escola. O professor é demitido e quando vai na sala de aula para recolher seus pertences, recebe uma homenagem dos estudantes, que sobem nas carteiras da sala seguindo a lição de rebeldia contra a autoridade burra, saudando-o: “Captain, my captain”.

– É simples assim – disse o professor. Um manda e os outros desobedecem. Ordens que atentam contra a espécie humana não devem ser cumpridas.

A CPI da Poesia vai prosseguir ouvindo outros poetas indígenas, entre eles Daniel Munduruku, candidato a uma vaga na Academia Brasileira de Letras.